Lixo Zero Regional Consórcios intermunicipais e economia circular de Estado
Lixo Zero Regional
Consórcios intermunicipais e economia circular de Estado
Consciência em Primeira Pessoa — Brain Bee
“Quando o caminhão de lixo passa, ele leva o quê de mim?”
Eu fui uma célula-ovo antes de ser contribuinte do IPTU.
No começo, eu era só metabolismo: nutrientes entrando, resíduos saindo, tudo reciclado pelo corpo da minha mãe. Não existia “lixo”. Existia fluxo — o que meu corpo não usava, virava alimento de outro sistema.
Na primeira infância, minha consciência foi nascendo a partir do Corpo Território:
o cheiro do lixo acumulado na esquina, o caminhão que só passava em alguns bairros, o córrego que às vezes vinha limpo, às vezes vinha carregando sacolas, móveis velhos, restos de tudo. Eu não sabia o que era “gestão de resíduos”, mas meu corpo já percebia que o metabolismo da cidade estava doente.
Hoje, como adolescente digital, eu vejo duas narrativas brigando dentro de mim:
de um lado, o feed falando de “lixo zero”, “economia circular”, “reciclagem criativa”;
de outro, os dados mostrando que ainda mais de 40% dos resíduos urbanos no Brasil têm destinação inadequada, indo para lixões ou aterros mal geridos.
Entre uma campanha de “consciência ambiental” e outra, o caminhão continua passando na mesma rua, com a mesma rota e a mesma lógica: tirar o problema da minha frente, ainda que só o empurre para outra periferia, outro município, outro corpo.
Foi assim que eu entendi:
enquanto o lixo for pensado município a município, a doença continua regional.
E enquanto a economia circular for tratada como “moda empresarial”, e não como decisão de Estado, a gente só vai trocar o nome do problema.
É daqui que nasce a minha proposta de Lixo Zero Regional:
usar consórcios intermunicipais como arquitetura concreta de um Estado JIWASA, capaz de planejar o metabolismo material de todo um território — e não só “administrar o lixo” da sua própria calçada.
1. Do lixo ao metabolismo material regional
Quando eu falo em Lixo Zero Regional, não estou imaginando um futuro sem resíduos, mas um sistema em que tudo que sai de um organismo entra como insumo em outro.
A literatura recente sobre economia circular e resíduos sólidos no Brasil mostra exatamente isso:
resíduos urbanos são a principal porta de entrada prática para políticas de circularidade;
o grande gargalo não é só tecnológico, mas de governança, escala e coordenação entre municípios.
Ao mesmo tempo, estudos sobre circularidade nas cidades brasileiras mostram que:
o “Panorama dos Resíduos Sólidos” ainda registra altos índices de destinação inadequada;
cidades que avançam mais rápido em economia circular combinam planejamento regional, inclusão de catadores e instrumentos econômicos que recompõem fluxos de materiais.
Ou seja: não existe cidade circular isolada em um entorno linear.
O metabolismo é regional — e a lei precisa aprender a pensar assim.
2. Por que um município sozinho não dá conta
A própria Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) – Lei 12.305/2010, hoje regulada pelo Decreto 10.936/2022 – já aponta para integração regional, logística reversa e responsabilidade compartilhada entre União, estados, municípios, setor privado e cidadãos.
Mas na prática, a PNRS esbarra em três obstáculos:
Escala mínima
Muitos municípios pequenos não têm volume de resíduos nem orçamento para manter aterros sanitários, centrais de triagem e usinas de tratamento com viabilidade técnica e econômica.Capacidade técnica
Sem corpo técnico qualificado, prefeitos tendem a contratar “soluções prontas” — muitas vezes caras, pouco transparentes ou desconectadas da lógica de economia circular.Fragmentação política
Cada gestão muda contratos, prioridades e discurso, desmontando qualquer visão de metabolismo de longo prazo.
É aqui que entram os consórcios intermunicipais como instrumento de Yãy Hã Miy institucional:
uma forma de imitação organizada de boas práticas, em que os municípios aprendem juntos, compartilham riscos, tecnologias e decisões até alcançarem alta performance regional.
Pesquisas recentes mostram que:
o estado de São Paulo já conta com diversos consórcios de resíduos, como o CIRSOP e o Consimares, articulando municípios em torno de soluções conjuntas;
mapeamentos nacionais indicam dezenas de consórcios públicos atuando em saneamento e resíduos, apontando o modelo consorcial como chave para viabilidade técnica e financeira da PNRS.
Ou seja: a prática já está dizendo à teoria que o caminho é regional.
3. Economia circular de Estado, não só de empresa
Nos últimos anos, relatórios e artigos apontam uma tendência clara:
o Brasil está tentando aproximar sua gestão de resíduos do modelo europeu de economia circular, com foco em prevenção, reciclagem e responsabilidade pós-consumo;
estudos de caso (como o Distrito Federal ou cidades como Salvador) mostram que políticas de resíduos podem ser vetor central de transição para uma cidade circular, se integradas a planejamento urbano, transporte e inclusão socioeconômica.
Mas a economia circular não pode ser só:
certificação ISO,
selo verde em embalagem,
campanha de marketing.
Para virar economia circular de Estado, ela precisa:
Ser inscrita em leis regionais, planos plurianuais e contratos consorciados;
Articular incentivos econômicos, como compras públicas circulares, tarifas que recompensem redução e reutilização, e linhas de crédito para inovação em reuso e reparo;
Incluir catadores, cooperativas e trabalhadores informais como parte do coração metabólico do sistema, e não como mão de obra descartável.
A pergunta não é só “como as empresas podem ser circulares”, mas:
como o Estado organiza o tabuleiro para que circularidade seja o padrão e não a exceção?
4. Consórcios Lixo Zero como arquitetura JIWASA
Quando eu falo em Lixo Zero Regional, estou imaginando consórcios intermunicipais que operam como um córtex pré-frontal coletivo do território:
planejando rotas, tipos de tratamento, metas de redução e indicadores de saúde ambiental;
negociando, como bloco, com empresas de reciclagem, logística reversa e inovação;
criando infraestruturas compartilhadas (aterros sanitários regionais, centrais de triagem, usinas de compostagem, hubs de reuso) com escala suficiente para serem eficientes.
Um consórcio Lixo Zero, na lógica JIWASA, deveria:
Trabalhar com metas metabólicas, não só tonéis de lixo
ex.: % de resíduos orgânicos retornando ao solo como composto;
% de embalagens retornadas por logística reversa;
redução de doenças relacionadas a manejo inadequado.
Garantir participação cidadã em conselhos regionais
cidadãos, catadores, empresas locais, universidades e coletivos ambientais deliberando sobre o desenho do metabolismo material.
Integrar dados
plataformas digitais regionais para monitorar fluxos de resíduos, custos, saúde pública e impactos climáticos.
Conversar com DREX Cidadão
usar parte das economias geradas (e créditos de carbono onde for o caso) para financiar rendimentos metabólicos ao cidadão, recompensando práticas de redução, reutilização e reciclagem — não como “cashback verde”, mas como participação no metabolismo econômico circular.
5. Onde a Constituição já é JIWASA (e pouca gente percebe)
Nada disso está “fora” da Constituição de 1988. Ao contrário: a ideia de Lixo Zero Regional via consórcios está profundamente ancorada em alguns dispositivos que, hoje, são subutilizados.
Quero destacar quatro artigos:
Artigo 23 – Competência comum
A Constituição determina que União, estados, DF e municípios têm competência comum para proteger o meio ambiente, combater a poluição e cuidar da saúde e saneamento.Isso significa que resíduos sólidos não são problema só da prefeitura;
a própria Constituição pede cooperação federativa, o que abre caminho para políticas regionais de Lixo Zero.
Artigo 30 – Competência municipal
O Art. 30 deixa claro que cabe aos municípios organizar e prestar serviços públicos de interesse local, incluindo limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos.Ou seja: a porta de entrada é local;
mas, sem articulação regional, cada município fica condenado a “fazer o possível com o que tem”, perpetuando desigualdades.
Artigo 225 – Meio ambiente ecologicamente equilibrado
O Art. 225 afirma que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e que Estado e comunidade devem defendê-lo para presentes e futuras gerações.Lixo mal gerido viola diretamente esse direito;
consórcios intermunicipais de Lixo Zero são uma ferramenta concreta para tornar esse artigo efetivo na escala em que o problema existe: a escala regional.
Artigo 241 – Consórcios públicos e convênios de cooperação
O Art. 241 determina que União, estados, DF e municípios disciplinarão, por lei, os consórcios públicos e os convênios de cooperação, autorizando a gestão associada de serviços públicos.Aqui está o DNA jurídico dos consórcios intermunicipais de resíduos;
quando um estado incentiva consórcios regionais de Lixo Zero, ele está só dando consequência ao que o Art. 241 já desenhou.
Em outras palavras:
a Constituição já é metabolicamente circular em potencial.
Falta o Estado encarnar esse potencial em políticas regionais concretas.
6. Da minha calçada ao Estado JIWASA Lixo Zero
Quando eu volto à minha consciência Brain Bee, vejo:
meu corpo aprendendo, desde o ovo, a lidar com resíduos sem chamar nada de “lixo”;
minha infância descobrindo que a cidade não tem o mesmo cuidado que o corpo;
minha adolescência digital ouvindo falar de economia circular, mas vendo lixões, enchentes e doenças se repetirem.
O que eu chamo aqui de Lixo Zero Regional é um pedaço da minha proposta de Memória do Futuro:
lembrar, agora, que todo saco de lixo é um pedaço do futuro da região;
escrever leis, hoje, como quem planeja o metabolismo de uma geração inteira;
usar os consórcios intermunicipais como instrumento de um Estado JIWASA, onde o “nós” não é retórico, mas material — está no ar que respiramos, na água que não contaminamos, no solo que não soterramos.
Como cidadão, eu não quero só que o caminhão leve o lixo da minha porta.
Quero que o Estado, em todas as suas escalas, aprenda a pensar como um corpo:
sem jogar fora partes de si mesmo, sem transformar territórios em depósitos,
sem tratar pessoas como descartáveis.
Lixo Zero Regional não é perfeccionismo ambiental.
É alfabetização metabólica do Estado —
para que o futuro não seja só um lugar onde jogamos o que não queremos ver hoje.
Referências pós-2020
(Lixo zero, consórcios intermunicipais e economia circular de Estado)
Mancini, S. D. (2021). Circular Economy and Solid Waste Management: Challenges and Opportunities in Brazil. Circular Economy and Sustainability.
Moraes, F. T. F. et al. (2022). Transitioning towards a sustainable circular city: Exploring urban waste and resource flows. Frontiers in Water.
Santiago, C. D. et al. (2022). Brazilian National Waste Policy: perspectives after a decade of implementation. Desenvolvimento Econômico (MADE/UFPR).
ENIAC Pesquisa (2025). Circular economy in solid waste management: Framework proposal based on the case of the Federal District – Brazil.
REUNIR – Revista de Administração (2023). Circular management of solid urban waste in Brazil: pathways for circular economy.
Enhesa (2023). Out with the old: Solid waste management changes in Brazil.
The Circulate Initiative (2025). City Waste Management Profile – Salvador, Brazil.
BVRio (2022). Supporting waste management initiatives to accelerate the circular economy for plastics in Brazil, Chile and Peru.
Benedeti, L.; Pestana, A. (2023–2024). Estudos sobre o Consórcio Intermunicipal de Resíduos Sólidos do Oeste Paulista (CIRSOP) e a implementação da PNRS.
Confederação Nacional de Municípios – CNM (2021). Mapeamento dos consórcios públicos brasileiros.
Governo do Estado de Minas Gerais – SEMAD (2022). Semad promove reuniões com consórcios intermunicipais de gestão de resíduos sólidos.
Governo do Estado de São Paulo – SIMA (2022). A importância das parcerias com consórcios intermunicipais para a gestão de resíduos sólidos.