Dor, apatia e depressão em demência
Dor, apatia e depressão em demência
Quando sentir e pensar começam a se separar
(Consciência em Primeira Pessoa • Neurociência Decolonial • Brain Bee • O Sentir e Saber Taá)
O Sentir e Saber Taá — quando o corpo sofre em silêncio
Eu imagino um corpo velho, o meu corpo daqui a alguns anos.
O joelho dói ao levantar da cadeira, a memória falha, o nome das pessoas escapa.
Por fora, às vezes, quase nenhuma expressão.
Por dentro, um misto de dor, cansaço e um certo “tanto faz” que vai tomando conta.
E aí vem a pergunta que dói mais fundo:
Será que alguém ainda percebe a minha dor
quando o meu rosto já não denuncia,
e a minha mente já não encontra palavras?
Esse é o Taá quebrado:
o corpo sente, mas não consegue mais transformar sentir em pedido de ajuda.
Dor, apatia e depressão se misturam, e o outro já não sabe se eu sofro, se eu não ligo,
ou se eu simplesmente não consigo mais mostrar nada.
É exatamente esse território que o estudo de A.J. Huff e colaboradores, publicado em 2025, tenta iluminar:
“Functional near-infrared spectroscopy (fNIRS) detects brain changes for apathy and pain in patients with Alzheimer’s disease and related dementias”
(busca: Huff 2025 fNIRS apathy depression pain ADRD knee osteoarthritis).
Eles perguntam, com fNIRS apontado para o córtex:
O que o cérebro faz com a dor quando a demência começa a separar sentir e pensar?
A pergunta científica
O estudo reúne 40 pessoas com demência de Alzheimer e doenças relacionadas (ADRD) e osteoartrose de joelho, todas com dor crônica, algumas com maior preservação cognitiva, outras com maior comprometimento.
A pergunta é dupla:
Como a dor física, a apatia e a depressão se relacionam com a hemodinâmica cerebral?
Essas relações mudam conforme o grau de comprometimento cognitivo?
Em outras palavras:
o cérebro de quem ainda entende o próprio sofrimento reage diferente do cérebro de quem já não consegue nomeá-lo?
Métodos: fNIRS, dor térmica e hemodinâmica pré-frontal
Os autores aplicam fNIRS em cinco regiões corticais bilaterais:
córtex pré-frontal medial,
dorsolateral,
córtex motor primário,
córtex somatossensorial,
e regiões adjacentes.
Enquanto medem:
estímulos de dor térmica sub-limiar (não insuportáveis, mas claramente incômodos),
auto-relatos de dor,
escores de depressão e apatia.
Na pipeline de análise, entram os elementos do nosso PROMPT-MATRIZ:
GLM (General Linear Model) para modelar a HRF em cada canal, relacionando momentos de estímulo térmico a aumentos de O₂-Hb e quedas de HHb;
short-channels, quando disponíveis, para separar componentes extracorticais (circulação superficial) da resposta cortical profunda;
filtragem e decomposição ICA/PCA, reduzindo artefatos de movimento, pulsação e respiração;
modelagem da hemodinâmica em cada região de interesse e correlação com dor, apatia e depressão.
É um estudo exploratório, mas com uma intenção clara:
ver a dor não apenas como sensação, mas como assinatura hemodinâmica que muda com o estado cognitivo.
Resultados: quando a mesma dor acende o cérebro de formas diferentes
Os achados principais:
Em participantes com maior comprometimento cognitivo, níveis mais altos de apatia se associam a menor aumento de O₂-Hb no córtex pré-frontal direito diante da dor. É como se a dor não “acendesse” mais o circuito motivacional.
Em participantes com melhor performance cognitiva, a relação se inverte em algumas regiões:
há correlações positivas entre apatia e O₂-Hb em áreas somatossensoriais,
e entre dor percebida e ativação pré-frontal medial.
Traduzindo em Taá:
A mesma dor térmica, no mesmo joelho,
pode virar silêncio emocional em um cérebro,
e “grito organizado” em outro.
O fNIRS mostra que dor, apatia e depressão não são apenas rótulos clínicos;
são diferentes modos do corpo-cérebro ligar ou desligar redes pré-frontais e somatossensoriais à medida que a demência avança.
Lendo isso com nossos conceitos
Mente Damasiana rachada
Na Mente Damasiana, consciência depende da integração entre:
interocepção (sentir por dentro) e
propriocepção (sentir o corpo no mundo).
Na demência com dor crônica, vemos:
a interocepção ainda alerta (o joelho dói),
mas a ponte para motivação, iniciativa e expressão vai se rompendo.
Dor sem motivação vira apatia dolorosa:
sente, mas não move; sente, mas não pede; sente, mas não organiza pensamento.
Quorum Sensing Humano e “velhos invisíveis”
O QSH se fragmenta:
a pessoa deixa de emitir sinais claros de sofrimento, e a rede social (familiares, cuidadores, Estado) começa a falhar na leitura.
É o idoso latino-americano na instituição lotada, na periferia esquecida:
corpo que dói, mas que não é mais reconhecido como território vivo.
Zona 1, Zona 2 e Zona 3
Zona 1: automatismos de cuidado — medicação, banho, rotina.
Zona 2: espaço em que ainda é possível fruir, rir, cantar Violeta Parra, lembrar “Gracias a la vida” não como ironia, mas como possibilidade.
Zona 3: quando ideologias e descaso coletivo sequestram a própria interpretação da dor — “é velhice”, “é assim mesmo”, “não sente nada”.
O estudo de Huff mostra que, na demência, a Zona 2 pode se estreitar, e que sem olhar hemodinâmico mais fino, podemos confundir aparente calma com apagamento afetivo.
DANA e o corpo que resiste degradando
Para mim, DANA aparece aqui como:
o DNA insistindo em manter a vida,
reorganizando circuitos, compensando o que pode,
enquanto parte da rede neural se desmantela.
A variabilidade das respostas hemodinâmicas é também a marca dessa tentativa de sobrevivência metabólica dentro do cérebro em declínio.
Taá e colonização — dor sob epistemologia colonial
Percebo que, nesse contexto, até a dor é colonizada:
o que não é visível, medido ou “comportamentalmente evidente” vira inexistência clínica.
Os corpos velhos e dementes de nossa América Latina carregam não só lesão cerebral,
mas séculos de subjetividades apagadas, em que a dor do pobre, da mulher indígena, da pessoa negra rural é tratada como “normal”.
O Sentir e Saber Taá — abrindo a fresta de descolonização
Antes de ler qualquer dado, eu sinto algo no corpo: o peso de uma presença que já não reage como antes, o olhar distante de alguém que amo, o silêncio que substituiu o gesto.
E nesse sentir, percebo outra camada:
as palavras com que descrevemos “demência” — perda, déficit, declínio — já chegam colonizadas.
Foram moldadas para reduzir o corpo a máquina falha, a mente a déficit, a afetividade a ruído, a dor a estatística.
A ciência colonial aprende a quantificar, mas não a escutar.
Quando Taá se manifesta — quando sinto antes de nomear — eu percebo que não existe separação entre Neurociência, Política e Espiritualidade (Utupe, Xapiri como memória viva que sustenta o pertencimento).
O corpo que sofre também carrega mundos, histórias, cosmologias.
Coloniza-se não apenas pela história, mas pela palavra que impede alguém de existir inteiro.
Cada estudo científico, quando lido com coragem, abre uma fissura na Zona 3 — e lembra que mesmo a pessoa com demência continua sendo território vivo de mundos possíveis.
Arte latino-americana como espelho
Quando penso nesses corpos que doem e se apagam, sinto eco de “Los nadies”, de Eduardo Galeano:
os “ninguéns” que “valem menos que a bala que os mata”.
No nosso caso, “os nadies” são aqueles cuja dor não chega nem a ser contabilizada —
nem no SUS, nem nos lares de idosos, nem nas estatísticas de sofrimento psíquico na demência.
Trazer Galeano para este blog não é ornamento;
é reconhecer que a neurociência da dor em demência, na América Latina,
é também luta por quem é sistematicamente visto como ninguém.
Avatares ou Referencias
Ao me orientar pelo avatar DANA, percebo que a leitura mais fecunda aqui é a da reorganização mínima que o corpo ainda tenta fazer.
E pelo olhar do avatar Iam, vejo o quão delicada é a fronteira entre sentir e não conseguir expressar — o campo onde a pessoa ainda existe, mas o mundo não a reconhece mais plenamente.
Onde a ciência ajusta nossa forma de ver
Não podemos mais tratar demência como:
ausência,
vazio,
falta,
“desligamento”.
A evidência mostra:
a pessoa ainda sente — nós é que não sabemos mais interpretar.
E isso exige uma mudança ética profunda.
Implicações para políticas, educação e cuidado LATAM
1. Formação de cuidadores baseada em interocepção e ritmo
Menos protocolos mecânicos, mais sensibilidade ao corpo do outro.
2. Arquitetura afetiva de instituições
Luz, silêncio, temperatura e ritmo influenciam hemodinâmica e apatia.
3. Políticas públicas para a demência
Apoio comunitário, cuidado territorial, valorização das díades cuidadoras.
4. Redução do estigma
O corpo não deixa de ser território vivo —
nós é que precisamos reaprender a vê-lo.
Palavras-chave para busca científica
“2025 dementia apathy depression affective hemodynamics fNIRS GLM short-channels HRF variability”